1970 - even better than the real thing


Brasil antes de encarar a difícil partida contra a Inglaterra. Em pé: Carlos Alberto Torres, Brito, Piazza, Félix, Clodoaldo, Everaldo e Admilde Chirol (preparador físico). Agachados: Jairzinho, Rivelino, Tostão, Pelé e Paulo Cesar Caju.

Quem lê qualquer dos textos, assiste qualquer um dos programas, enfim, que tem contato com qualquer coisa referente ao histórico tricampeonato de 1970, tem a tendência de achar que está lidando com algo muito acima de qualquer questionamento. Afinal de contas, como todos sabem, foi uma seleção que não apenas levantou a taça, como também legou ao mundo muito do que de mais espetacular já se viu em termos de futebol, seja artístico ou não. É tão grande a impressão de que lidamos com um fenômeno, um evento além das barreiras do mundo ordinário, que levantar qualquer coisa que não leve a engrandecê-lo mais ainda seria um sacrilégio, uma heresia digna de amantes do futebol brucutu e do pugilato em forma de futebol. Complicado lidar com uma lenda, acreditem.

Mas a verdade, teimosa e muitas vezes inconveniente verdade, tem uma espécie muito especial de cobrança sobre o cronista. E ela nos obriga a, mesmo admirando do fundo da alma a pujança do futebol que fascinou toda a Terra, lembrar das atitudes pouco sérias, dos escorregões amadorísticos que ameaçaram colocar em risco essa que acabaria sendo a mais exuberante de todas as nossas seleções. E não pelo prazer do contraditório, pelo contrário: o simples fato de termos triunfado mesmo com essas pequenas falhas, de um futebol tão espetacular ter nascido de raízes pouco firmes e profundas, só faz do Tri no México um evento ainda mais intenso e impressionante.

Verdade que 1966 tinha sido um fiasco, uma conjunção de erros de humilhar Jerry Seinfeld em termos de humor involuntário. Mas as medidas tomadas para colocar ordem na casa não foram exatamente as melhores que se possa imaginar. Depois do fracasso de Vicente Feola, optou-se por Aymoré Moreira, o que de certo modo era uma insistência no mesmo erro – não bastasse o homem já ter sido treinador da seleção, havia sido dispensado semanas antes da Copa da Inglaterra, em detrimento do mesmo Vicente Feola que agora estava substituindo. Ou seja, essa pretensa renovação era na verdade um andar em círculos, nada parecido com o recomeço que se esperaria depois de semelhante fracasso. E o pior: depois de quase três anos juntando os cacos, Aymoré acabou dispensado novamente, às vésperas das eliminatórias para a Copa do México. Pois é, pessoal, convicção é isso aí.

Para agradar a imprensa esportiva, cuja pressão pela segunda vez tinha feito Aymoré Moreira cair, a CBD adotou uma medida surpreendente: chamou João Saldanha, famoso comentarista e jornalista esportivo, e deu carta branca ao homem para fazer o que quisesse. Sua solução emergencial foi boa: montou uma base com jogadores do Botafogo e do Santos, aproveitando o entrosamento que tinham nos seus clubes para acelerar o processo e dar mais coesão ao time. O resultado da medida foi muito bom. Uma campanha impecável nas eliminatórias: 100% de aproveitamento, 23 gols marcados e apenas dois sofridos, em uma classificação tranquila e capaz de apontar um caminho promissor para o futuro. Vale citar que, na última partida contra o Paraguai, o Maracanã registrou o maior público oficial da história do futebol, com 183.341 espectadores – mais do que indicou, por ex, o borderô da final da Copa de 1950, quando o superlotado Maraca tinha “apenas” 173 mil cabeças...

O problema é que, se entendia bastante bem de como montar um time eficiente em curto espaço de tempo, Saldanha tinha problemas sérios em controlar seu temperamento e, em especial, a sua língua. Poderíamos fazer um post só para ele, listando todas as pérolas cometidas pelo homem na sua curta e intempestiva passagem pelo comando técnico da seleção brasileira. Algumas delas, sejamos honestos, entram na categoria do humor ácido e pouco mais que isso – como, por exemplo, a oportunidade em que foi perguntado sobre o que achava do gramado do Beira-Rio e respondeu “não sei, nunca comi grama na vida”. Talvez as declarações do homem sobre uma suposta miopia de Pelé possam entrar na mesma categoria, embora ironizar em cima de algo assim longe esteja de ser uma medida das mais inteligentes. O problema é que essas declarações, já muito questionáveis por si mesmas, são até delicadas quando comparadas ao ápice da obra de Saldanha. Por exemplo: quando estamos em pleno regime ditatorial, e o general que comanda a nação sugere de forma nada sutil a escalação de um atleta específico, pode não ser o caso de concordar, mas há que se tratar a questão com o mínimo de diplomacia. Não foi o caso: ao saber que o general Médici tinha sugerido a escalação de Dario, o Dadá Maravilha, nosso chapa Saldanha respondeu de forma célebre, com todo o senso político que Deus lhe deu, que ele nunca tinha se metido a escalar ministério, então que o presidente não se metesse a escalar a seleção. Somando a incontinência verbal de Saldanha com sua capacidade de criar inimizade com preparadores físicos e auxiliares técnicos, não surpreende que nosso falastrão treinador acabasse, digamos, subtraído da conta final. Até na hora de dar tchau nosso bom amigo exercitou o fio de sua língua: ouvindo a declaração de que a comissão técnica tinha sido “dissolvida”, respondeu impávido: “não sou sorvete, não posso ser dissolvido”...

Sorvete ou não, o fato é que João Saldanha acabou virando passado num momento meio delicado, quando faltava pouco tempo para a Copa e a necessidade de fechar uma escalação era urgente. A primeira opção de João Havelange caiu sobre Dino Sani, veterano de conquistas anteriores e tido como uma pessoa séria e centrada. Mas aparentemente as exigências de Dino Sani foram meio exageradas, e o acordo não se concretizou – mesma coisa para Otto Glória, convidado logo em seguida. Ou seja, Mário Jorge Lobo Zagallo foi nada menos que a terceira opção para a vaga de Saldanha, o que demonstra a dificuldade em encontrar alguém disposto a abraçar o rojão. Zagallo, sejamos justos, tinha ganhado a Taça Brasil de 1968 como treinador do Botafogo, tendo portanto boas credenciais para a missão. Mas a verdade é que foram criadas duas imagens antagônicas sobre Zagallo – seus defensores exaltando a revolução tática que implementou e sua sabedoria em escalar todos os craques no time, os detratores dizendo que já estava tudo pronto graças a João Saldanha e o homem teve apenas que administrar e ir para o abraço. E nenhuma delas corresponde tão bem assim à realidade.

Zagallo teve méritos inegáveis em enxergar potencialidades e direcioná-las em favor do coletivo, mas apanhou um pouco das circunstâncias e teve problemas com a sua própria (e notória) cabeça-dura. Para ele, o 4-3-3 era o esquema perfeito – e, ao contrário do que hoje se diz, sua tendência inicial era de deixar nomes fortes no banco, em nome do bom funcionamento tático e de prerrogativas defensivas. Por muito tempo, por exemplo, optou por escalar Paulo Cesar Caju no ataque, deixando Tostão no banco – para ele, um jogador muito parecido com Pelé, e portanto mais adequado a ser um mero substituto do Rei. Um amistoso fracassado contra a Bulgária rendeu, além de um placar de zero a zero e uma vaia estrepitosa ao apagado Caju, a certeza de que a escalação utilizada não era a mais eficiente para os jogadores que estavam sendo convocados. Embora a geração fosse farta em termos de talentos, muitos jogadores eram de fato semelhantes em suas funções táticas. Sentindo a proximidade da lambida no pescoço, o Lobo lembrou que já tinha sido boleiro, e resolveu conversar com seus jogadores na busca de boas soluções para o time. E foi assim que algumas alternativas se desenharam.

Nada menos que cinco jogadores usavam a camisa dez em seus respectivos times: além de Pelé no Santos, tínhamos Rivelino (Corinthians), Gérson (São Paulo), Jairzinho (Botafogo) e Tostão (Cruzeiro). Ninguém seria louco de questionar Pelé como titular e dono da 10, nem mesmo João Saldanha e suas (queremos crer) brincadeiras de mau gosto sobre a miopia do Rei. Por outro lado, como acomodar todos esses craques no mesmo time? Na base da conversa com jogadores e comissão técnica, Zagallo foi encontrando alternativas. Tostão virou centroavante, Rivelino foi para a esquerda, Jairzinho na direita. Clodoaldo e Piazza eram volantes de inegável qualidade; para caberem no time, e como faltassem zagueiros inquestionáveis no plantel, Zagallo puxou Piazza para trás, escalando-o como beque. O 4-3-3 tornou-se um esquema híbrido, com grande flutuação de posições. Para manter a organização, Gérson virou capitão e voz ativa do treinador dentro de campo, usando sua experiência para orientar a movimentação e posicionamento de seus companheiros. Mesmo quase sem terem treinado juntos, essa formação demonstrou rapidamente o potencial para dar certo. E como deu certo, meus amigos. Como deu.

Ficar repisando cada uma das atuações brasileiras nessa Copa tão lendária seria algo digno de aparecer num dicionário, como sinônimo da expressão “chover no molhado”. Muito se falou do brilhantismo daquela equipe, do futebol exuberante que exibiram, de como aquela equipe resgatou a beleza do futebol depois de duas Copas marcadas pela força física sem muita criatividade e por aí vai. E acreditem, amigos/as: é tudo a mais pura verdade. Como jogava a seleção de 1970! Taticamente, a coisa parece mágica, e no fundo é mesmo: o esquema tático é mais um pretexto para dispor as peças em campo do que qualquer outra coisa. Para quem pega a missa pela metade, parece o triunfo da técnica sobre a rigidez, a vitória do futebol moleque sobre a chatice de pranchetas e formatações táticas. Foi isso, mas não foi exatamente isso; havia sim uma preocupação com posições, preenchimento de espaços, trocas de função e distribuição de tarefas dentro de campo. Embora Carlos Alberto Torres fosse o capitão, Gérson é a figura fundamental dentro de campo, sempre orientando, demonstrando uma visão de jogo rara entre jogadores de todos os costados. A seleção de 1970 foi, de fato, uma conjunção mágica – um plantel de jogadores não apenas qualificados tecnicamente, mas dotados de grande inteligência tática. Juntando esses fatores, mesmo numa competição de quase inigualável nível técnico, os demais participantes não tiveram a menor chance.

Abaixo, um breve resumo de cada uma das partidas disputadas. Não vou me estender muito, mesmo porque não é necessário; as imagens falam por si mesmas.



A estreia contra a Tchecoslováquia foi numa tarde escaldante de 03 de junho, no Jalisco de Guadalajara. Como a Copa do México era transmitida ao vivo para a Europa, as partidas acabaram disputadas em horários cruéis, tipo meio dia com sol de quase quarenta graus em pleno verão mexicano. O Brasil entrou em campo com Félix; Carlos Alberto, Brito, Piazza e Everaldo; Clodoaldo, Gérson e Pelé; Jairzinho, Tostão e Rivelino. A seleção tcheca era uma equipe qualificada, e saiu vencendo com um gol de Ladislav Petráš mais lembrado pela comemoração com o sinal da cruz do que pelo tento em si – leia aqui para mais detalhes. De qualquer modo, o Brasil estava inspirado, empatou cedo e na segunda etapa colocou os adversários na roda. Destaque óbvio para o gol-que-só-Pelé-não-fez, uma bucha incrível do meio de campo que, caso entrasse, seria bom motivo para encerrar a Copa ali mesmo. O arqueiro Viktor, coitado, quase enfarta no lance, tamanho o medo de ficar para a história por ter tomado um gol desse quilate. Todos os quatro gols brasileiros são golaços, mas destaquemos o primeiro, uma bucha incrível de Rivelino em cobrança de falta. Foi justamente esse gol que gerou o apelido “patada atômica” – um epíteto muito justo, como se vê.

O segundo jogo, contra a atual campeã Inglaterra, foi bem mais complicado. Diante da aplicação tática dos ingleses, os brasileiros suaram para criar boas chances – e, quando conseguiam, se viam confrontados com a barreira humana chamada Gordon Banks. O que esse homem pegou durante a partida é algo de outro mundo – muito além da sempre lembrada defesa no cabeceio de Pelé, embora essa em especial seja de fato assombrosa. Para vencer, só mesmo num lance de genialidade individual – e assim foi: Tostão faz jogada genial, rola para Pelé e o generoso Rei do futebol apenas serve Jairzinho para que ele continue seu caminho rumo à consagração como Furacão da Copa. Assistam os lances e percebam que, mesmo tendo sido um confronto renhido, foi também uma partida de grande qualidade técnica. Percebam também, pela atitude dos jogadores, o calor de Guadalajara.



O ‘match’ contra a Romênia, considerada o time mais fraco da chave, acabou sendo bastante disputado. Por duas vezes, os aguerridos romenos ameaçaram a vitória brasileira, com gols de pouco brilhantismo, mas de muita dedicação. O Brasil, porém, era mais time, e não deu margens à contestação. Para a alegria não só da torcida brasileira, mas também dos mexicanos, que a essa altura torciam por nós tanto, ou possivelmente mais, do que para seus conterrâneos...



Nas quartas, um time que hoje soa como surpresa, mas na época merecia muito respeito. O Peru tinha liquidado a Argentina nas eliminatórias, em pleno território inimigo, e não contente com esse feito conquistou também uma consistente vaga para os confrontos diretos, perdendo apenas para a favorita Alemanha Ocidental e marcando gols em todos os jogos. O trabalho de Didi, campeão do mundo transformado em treinador, sem dúvida colaborou para esse momento histórico do futebol andino. Quem pode dizer até onde os bravos peruanos teriam ido, caso não tivessem topado tão cedo com a nossa seleção? Pois a verdade é que não demos muita chance de contestação: 4 a 2 categórico, com uma atuação inspiradíssima de Tostão e mais algumas belas buchas.



Nas semifinais, apenas seleções que já tinham conquistado o mundo conseguiram se qualificar. Em uma das chaves, Itália e Alemanha Ocidental fizeram o que, na humilde opinião deste mui humilde escriba, é não apenas o melhor jogo da Copa de 1970 como também o mais sensacional jogo da história das Copas e presença certa no ‘top 5’ dos jogos de todos os tempos. No outro embate, o Brasil encararia a marcação cerrada, e por vezes violenta, dos uruguaios. Cientes de que na disputa de técnica contra técnica não teriam muita chance, o Uruguai apostou na virilidade e na eficiência – e saiu ganhando, gol de Cubilla antes dos 20mins de jogo. O Brasil, pela primeira e única vez naquela Copa, pareceu sentir o jogo, e teve sérias dificuldades durante boa parte da primeira etapa. Foi necessária uma escapada surpreendente de Clodoaldo, no final do primeiro tempo, para igualar a partida. Na segunda etapa, já com o placar igual e mais relaxados, os brasileiros foram para cima – e garantiram a vitória com gols de Jairzinho (como sempre) e Rivelino. O último, aliás, o meu favorito em toda a Copa – jogada de pura raça e determinação impressionante. E como esquecer o outro não-gol antológico de Pelé, o drible da vaca mais espetacular de todos os tempos, que deve ter deixado Ladislao Mazurkievicz com um sério e automático desvio na cervical? Outro gol que, se entra, encerra a Copa ali mesmo – o que seria uma pena até, já que ainda teríamos a grande final contra a Itália.



Bueno, se descrever a campanha brasileira em 1970 já é um exercício de retórica pouco útil, o que dizer de um relato sobre a grande final, o confronto entre Brasil e Itália, disputado ao meio dia de 21 de junho no Azteca e que marcou o triunfo final de nossa melhor seleção? Muito pouco, sem dúvida. Então vou deixar apenas as imagens, brilhantes testemunhos de uma partida das mais intensas e emocionantes. Quem acha que o Brasil passeou sobre os italianos, aliás, muito se engana. Foi uma partida difícil e muito disputada, com forte marcação de ambos os lados (sim, acredite se quiser) e que seguiu empatada em um tenso 1 a 1 até os 21mins do segundo tempo. Quando Gérson desempatou, a Azzurra foi forçada a abrir espaços e ir para cima – e foi nessa medida desesperada que o Brasil construiu o placar elástico que, para muitos, é sinônimo de uma supremacia total. Não foi o caso, e ainda bem que não foi: tratou-se de jogo vibrante, disputadíssimo, pleno de emoção e que premiou uma equipe não apenas superior, mas que jogou melhor diante de um qualificado e muitíssimo competitivo adversário. Um título digno da lenda, justamente por ser muito maior do que ela. Uma partida histórica, na verdadeira acepção da palavra.



A festa do título foi intensa, justa e tão espetacular quanto toda a campanha brasileira. A torcida, ensandecida, invadiu o campo e arrancou as roupas dos jogadores, deixando Pelé de sunga e forçando Gérson a falar grosso com os torcedores para evitar a nudez total. Ia ficar meio chato no vídeo oficial do torneio, então convenhamos que o craque tinha toda a razão de evitar a fiasqueira... De qualquer modo, foi um título muito narrado, muito lembrado, e por isso mesmo exagerado desde o momento em que o árbitro Rudi Glöckner apontou o centro do campo e encerrou a partida. Mesmo o triste destino da Jules Rimet, roubada e derretida para virar colarinho de camelô, é uma demonstração dessa realidade. Nossa emoção diante de tamanho espetáculo mascarou todas as imperfeições, e fez da Copa do México uma lenda absoluta, uma jornada gloriosa além de qualquer questionamento. Mas acredito que, justamente nas arestas, está a verdadeira dimensão dessa conquista – e que apontá-las não diminui seu efeito, pelo contrário: aumenta sua amplitude e sua carga mágica e espetacular. Como dizem os estadunidenses, ‘don’t believe the hype’ – nesse caso, a vida é ainda mais bela e emocionante que a lenda.



Fotos: Brasil preparado para encarar a Inglaterra (Museu dos Esportes); Zagalo e Carlos Alberto mostram o peso de papel que foram buscar no México (Brazil in the World Cups); João Saldanha prestes a soltar uma pérola (blog do Espinoza); o Lobo e a sua alcatéia (Museu dos Esportes); juiz colocando ordem na bagunça em Brasil x Inglaterra (Arquivo - UOL); e Tostão e Pelé correndo para a festa (Blog do Gerson Nogueira).

Link para a matéria original (blog Carta Na Manga):
http://cartanamanga.blogspot.com/2010/04/1970-even-better-than-real-thing.html

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